Figuras

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Johannes Vermeer – A tocadora de viola

Nasci bem pequena, com lágrimas quentes de minha mãe assustando-me naquele final de tarde. Nascer é muito assustador, afinal. Saímos de um ventre quentinho e aconchegante, daí pulamos para um lençol áspero, enquanto rostos distorcidos nos observam, e o corpo todo dói e já aí, percebemos que a vida não tem volta, é olhar pra frente. Prosseguir numa estrada nem sempre tranqüila. Nem sempre ventral.
Cresci sozinha e brincava com meu cão que, anos depois, já eu na puberdade, resolveu deixar-me. Morreu. Morte. Próxima etapa, lidar com a partida.
Comecei a namorar dentro dos padrões de minha família: para casar. Sou do tempo em que se lia Proust, admirava-se Rembrandt e enaltecia-se Johannes Vermeer.
Casei. Casei-me com o Alencar. Bom moço, de modos temperados e contidos, até me fazer enjoar dele. Pulei da cama, num belo dia de primavera. Saí pelo mundo.
Abandonei a todos, e andei para frente. Sem marido, sem cachorro, sem o ventre de minha mãe.
Hoje, é fácil me encontrar pelas ruas, pois vivo no centro da cidade, pinto quadros e toco guitarra, canto para os transeuntes e gosto quando eles nem olham para mim. Às vezes choro um pouco, no final do dia, o sol se pondo.
Minha cidade ficou para trás, todavia, ao entardecer, é inevitável lembrar-me do cão, do marido bom e do parto caloroso que também fora num final de tarde.
Então eu me questiono: é fácil largar todas as coisas e partir? Ou teríamos mesmo uma relação com as primeiras experiências?
Entro em casa e vejo que a conta de luz chegou. Penso em antigos lampiões e cães latindo nas ruas.
Respiro lentamente enquanto caminho para minha cama. Hoje é um daqueles dias em que sinto solidão. Amanhã comprarei um cachorro, e ele se chamará pôr do sol.

Johannes Vermeer é um artista imprescindível do século XVII. Fica aqui minha humilde homenagem ao barroco holandês.